Gabriela Spinardi comemora neste mês um ano de seu primeiro trabalho como profissional de cozinha. Depois de dois anos de faculdade, ela e seu colega de classe Sérgio Campos abriram um bufê para eventos, o Balaio Gastronomia. Gabriela tem 42 anos. Sérgio, 38. Ambos resolveram, há pouco mais de três anos, mudar de carreira. Escolheram gastronomia pelo mesmo motivo: a paixão pelo mundo da comida. Formada em economia, Gabriela era gerente de controladoria de uma multinacional americana. Ganhava bônus, tinha carro da empresa e salário alto. Sonhava com pratos e panelas. Sérgio é professor de educação física. Ainda atende alguns alunos pela manhã, cedinho, antes de seguir para o Balaio. “Temos bastante trabalho, mas ainda não vivemos somente da gastronomia. Não é uma área fácil”, diz ela.

Em 2011, quando entraram na faculdade, Gabriela e Sérgio faziam parte do contingente de mais de 8 mil alunos que escolheram uma das 93 escolas de gastronomia de nível superior do Brasil.  Em menos de dez anos, a área explodiu como carreira universitária. De 2005 para cá, a quantidade de escolas saltou de 25 para 115. O número de novos alunos mais que triplicou, de 2.967 para 9.633. Foi uma das áreas que mais cresceram entre os cursos superiores, tanto em número de vagas quanto em número de candidatos. É como se, de repente, todos quisessem ser chefs.

Por que, em tão pouco tempo, a profissão de cozinheiro, que nunca tivera  prestígio, passou a atrair tanta gente?

Dois fatores simultâneos explicam esse fenômeno. O primeiro é o aumento no poder aquisitivo do brasileiro, que produziu uma revolução cultural na cozinha. A elevação de renda ocorrida desde os anos 1990 permitiu gastar em restaurantes bons, dentro e fora do país. Isso contribuiu para a aquisição de hábitos gastronômicos refinados e para a valorização de atividades de lazer, cultura e cuidados com o corpo. “A memória torna-se mais valiosa que a mercadoria. É a experiência que passa a valer”, diz Ana Carla Fonseca, diretora da agência de marketing Garimpo de Soluções. “O consumidor tem mais disposição para gastar com vivências positivas.”

Não menos importante que a renda maior é um fator cultural moderno: a glamorização da profissão de chef. A TV alçou o cozinheiro ao status de celebridade. A maior evidência da popularização da figura do chef é sua presença no horário nobre da TV Globo, a novela Império. Um dos núcleos da novela gira em torno do chef Vicente, interpretado por Rafael Cardoso, e de seu rival, Enrico, vivido pelo ator Joaquim Lopes. Na vida real, Rafael e Joaquim, embora atores, são cozinheiros por formação. Rafael tem um blog de comida natural, o Pura Mesa, e prepara-se para abrir seu próprio restaurante, o Pura, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Joaquim se formou na Faculdade Anhembi Morumbi, em São Paulo, e desistiu da carreira depois do estágio. “A vida é dura na cozinha. Tem de descascar muita batata, limpar muito camarão e cortar muito os dedos”, afirma. Durante os intervalos de gravação das novelas, os dois costumavam cozinhar para os colegas. Alguém imagina os galãs de geração anteriores debruçados profissionalmente sobre o fogão?

Centenas de programas relacionados à gastronomia foram produzidos na última década. Somente na categoria reality show são 112, incluindo a versão brasileira do Masterchef, da Band, e o Cozinha sob pressão, versão do inglês Hell’s kitchen, do SBT. Nessa lista nem estão dezenas de programas de receitas tradicionais, de nomes como Jamie Oliver e Palmirinha. A razão para tantos programas é simples: eles atraem telespectadores. O canal por assinatura TLC concentra 45% de sua audiência em produções de cozinha como Hell’s kitchen, Food fighters e Bakery boss. A emissora tem sete atrações do gênero. O Discovery Home & Health dedica as terças-feiras a séries de gastronomia. São seis programas, entre eles Cake boss e o Masterchef junior EUA. O Cozinha sob pressão deu ao SBT o terceiro lugar na TV aberta, no sábado, com 5,2 pontos de audiência, quase 2 pontos a mais do que a emissora tinha antes do programa. O Masterchef  já alcançou 7 pontos nas noites de terça-feira, o segundo lugar na TV aberta. No canal GNT, há 15 programas de culinária.

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COM POSE DE FRANCÊS
Nicolas Thomas Fusco em seu estágio. Ele trabalhou na cozinha antes de ir para a faculdade (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)

 

A gastronomia invadiu outras áreas do entretenimento e da cultura. Nas livrarias, ganhou destaque com variedade de títulos e edições luxuosas, que ultrapassam os R$ 300. O “cinema do gosto”, como são chamados os filmes da área, ganhou um catálogo de mais de 30 filmes na última década. Só neste ano, foram três destaques: os americanos Chef e A 100 passos de um sonho e  o belga Bistrô Romantique. Cozinheiros também invadiram o cinema verdade. A Livraria Cultura, de São Paulo, sediou no ano passado um festival de documentários de gastronomia. O que mais chamou a atenção foi Por que você partiu, que narra a história de notórios chefs franceses que vivem no Brasil. Na ficção ou na vida real, os chefs são o personagem principal de filmes, novelas e livros.

A valorização de ingredientes e receitas regionais em todo o mundo deu projeção internacional à gastronomia feita no Brasil. Alex Atala, do restaurante D.O.M., ganhou a companhia de profissionais como Helena Rizzo, do Mani – primeira brasileira no ranking de melhores chefs do mundo –, Thiago Castanho, do Remanso do Bosque, e Rodrigo de Oliveira, do Mocotó. Os cozinheiros viraram porta-vozes da cultura brasileira.

A figura do chef alcançou tanta notoriedade que descolou da principal função da profissão: cozinhar. Chefs estrelados conquistam mais fãs (e dinheiro) com as palestras e aparições na mídia do que com seus pratos. O estudante Nicolas Fusco, de 19 anos, entrou no curso de gastronomia da Universidade Estácio, em São Paulo, inspirado na figura de Atala. “Ele sabe pegar os pratos típicos, desconstruí-los e fazer algo único”, afirma. Gustavo de Oliveira Azevedo, de 21 anos, formado em gastronomia na Anhembi Morumbi, admira o inglês Gordon Ramsay, do programa Hell’s Kit­chen. “Ele cozinha muito bem.” Nicolas e Gustavo jamais sentiram o gosto da comida dos chefs em que se inspiram. A imagem que eles projetam é suficiente.

Esse entusiasmo coletivo com a boa comida tem efeitos diretos na economia. A quantidade de novos negócios de alimentação – incluindo restaurantes, lanchonetes, padarias e cafés – tem aumentado à casa de dois dígitos por ano, nos últimos cinco anos. O mercado brasileiro de alimentação fora de casa cresceu de R$ 38,6 bilhões, em 2005, para R$ 116,55 bilhões, em 2013, de acordo com a Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia). O brasileiro nunca comeu tanto fora. Em média, 37% do gasto com alimentação é destinado a refeições fora de casa. Paulistanos e cariocas, que respondem por 42% dos gastos fora de casa do país, puxam a média para cima. Despendem, em média, 47% de tudo o que gastam com alimentação em restaurantes. É um percentual equivalente ao do americano, que consome 48% do orçamento alimentar comendo fora.

Isso tudo gera empregos, claro. A Associação de Bares e Restaurantes (Abre) estima haver 45 mil vagas abertas nas cozinhas profissionais brasileiras, de cantinas e botecos a restaurantes de luxo. Só no site de recrutamento Catho, há 3.029 colocações de cozinheiro e ajudante de cozinha esperando candidatos. As cozinhas precisam de profissionais, e uma legião de jovens entusiasmados está louca para assumir o fogão. Tem como dar errado? Na prática, tem dado.

Tão impressionante quanto o aumento de vagas nas escolas de gastronomia é a taxa de desistência nesses cursos. Enquanto a média nacional de evasão universitária gira em torno de 20%, em gastronomia o índice ultrapassa 50%. Os números do MEC mostram que, para cada dez  alunos matriculados na graduação, apenas quatro pegam o certificado de conclusão – ainda que os cursos de gastronomia durem dois anos, metade do tempo regular da maior parte das faculdades.

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A dureza do dia a dia na cozinha leva os aspirantes a desistir do avental. Nos primeiros estágios, ainda durante a faculdade, os alunos percebem quanto a rotina da profissão é difícil. Descobrem que dez horas em pé numa cozinha quente, ora lavando o chão, ora descascando quilos de legumes, demoram a passar – enquanto o próximo dia de trabalho chega muito depressa. “No estágio, descobrimos que a cozinha da faculdade era a Disney”, diz Gustavo. Formado em 2010, ele desistiu de se empregar na área. “Hoje, dou aulas de inglês. Só volto para o fogão se for no meu restaurante”, afirma. O paulista Nicholas Fuchs Almeida, de 24 anos, também mudou de profissão com o diploma de gastronomia na mão. É vendedor numa importadora e produz cervejas artesanais por hobby. “Fui trabalhar num cruzeiro internacional e cheguei a ficar 17 horas direto na cozinha, para receber US$ 600 por mês. Não dá.”

Os salários não animam os talentos gastronômicos. Terminado o estágio, a remuneração de ajudante varia entre R$ 800 e R$ 1.200. Para cozinheiros, os valores ficam, em média, entre R$ 2.500 e R$ 4 mil. Para chegar aos R$ 4 mil, é preciso ser sous-chef (pronuncia-se su-chef), o primeiro cozinheiro depois do chef titular. Essa função normalmente é dada a quem tem anos de intimidade com as panelas. O sonhado posto de chef tem média salarial entre R$ 3.500 e R$ 5 mil. Na Região Sudeste do país, há chances de valores mais altos.

“Há 20 anos, tínhamos gente que queria trabalhar e escassez de qualificação. Hoje, o problema é o oposto. Há jovens formados, mas eles não estão preparados para o ritmo pesado da cozinha”, diz o chef francês Roland Villard, do restaurante Le Pré Catelan, do Sofitel do Rio de Janeiro. Villard faz parte do conselho da Le Cordon Bleu brasileira, escola internacional de gastronomia que deverá ser inaugurada em maio do próximo ano. “Teremos uma escola-restaurante aberta ao público. O aluno passará o último ano do curso trabalhando nela para chegar ao mercado sem idealização.”

Cozinheiros e donos de restaurante são unânimes ao dizer que o ideal é conhecer uma cozinha profissional antes de virar aluno. “Vá lá, ofereça-se para lavar o chão e as panelas de graça. Foi o que fiz antes de decidir estudar”, diz Benny Novak, chef e sócio do Ici Bistrô e de mais duas casas em São Paulo. A chef Renata Vanzetto, dona do Marakuthai, que funciona em São Paulo e em Ilhabela, e do Ema, em São Paulo, decidiu que viraria cozinheira depois de trabalhar em cozinhas da França e da Inglaterra, durante uma temporada de mochileira entre os 17 e os 18 anos. Para os chefs, a equação é simples: o estágio prévio livra o futuro aluno de aspirações fantasiosas que, na opinião deles, só atrapalham a vivência na cozinha. “O cozinheiro é um soldado que serve ao público na cozinha”, afirma Gastón Acurio, o premiado chefe de cozinha peruano (leia a entrevista com ele em epoca.com.br). Se o cozinheiro normal é um soldado, os grandes chefs podem ser generais rigorosos. “O sushiman vem aqui para aprender meu estilo, não criar o dele”, diz Jun Sakamoto, dono do mais premiado restaurante japonês de São Paulo.

Uma forma que muitos encontram para realizar o desejo de comandar sua própria cozinha é empreender. A prática comum dos profissionais de cozinha é achar sócios capitalistas para abrir seu restaurante. Nesse caso, é importante encontrar um homem do dinheiro que entenda as peculiaridades do mercado. “É um setor muito sensível. No último ano, houve queda de movimento por causa das manifestações e da Copa do Mundo. É essencial ter margem para lidar com mudanças de receita bruscas”, diz Marcelo Fernandes, sócio de cinco restaurantes em São Paulo, entre eles o Kinoshita e a Mercearia do Francês. Sakamoto, dono do restaurante que leva seu nome e da Hamburgueria Nacional, dá outro conselho. “Para quem quer ter um restaurante, é útil estudar administração de empresas”, diz. “As margens nesse ramo são muito apertadas. Administrar bem pode ser a diferença entre ter lucro e não ter.” Quem não quer arcar com a responsabilidade de abrir o próprio restaurante pode investir em operações enxutas, como serviços de bufê, casas especializadas em fornecer para restaurantes e até em comida de rua, os famosos “food trucks”.

Há oportunidades que permitem combinar o gosto pelo fogão e a tranquilidade de uma vida com jornada comercial. O trabalho em grandes indústrias alimentícias – como Nestlé, Unilever, Yoki ou Quaker – e em redes de restaurantes que ficam dentro de empresas permite isso. Essas cozinhas têm hora para entrar, hora para sair e finais de semana liberados. O importante é descobrir o que funciona para cada um.

A chef Renata viveu uma história curiosa depois que já era dona do Marakuthai. De tanto insistir, ela conseguiu ser aceita para fazer um estágio de 25 dias no Noma, o restaurante número um do mundo, segundo a revista Restaurant. Ao chegar lá, levou um susto. Eram dezenas de cozinheiros num lugar enorme. Todos para servir somente o Noma. Entre eles só havia duas mulheres. Logo de cara, um cozinheiro português disse: “Olha, apostei que você consegue ficar dois dias aqui. Os homens costumam ficar cinco dias até correr. As mulheres, um. Me ajuda a ganhar o bolão”. Dezesseis horas de trabalho insano depois, Renata entendeu a razão da aposta. Saiu de lá curvada de tanta dor no corpo. “Não se pode cometer nenhum tipo de deslize no jeito de fatiar, de lavar, de montar o prato, de temperar. É muita pressão estar entre os melhores do mundo. Lavei a cozinha inteira três vezes naquele dia”, diz ela. Renata conta que voltou no dia seguinte, e no outro, até completar 25 dias. O colega português perdeu o bolão. Aos 24 anos, ela ganhou varizes nas pernas, que ainda doem. “Estou acostumada a trabalhar muito, mas aquilo é insano. Jamais conseguiria me adaptar a um restaurante desse nível.” Para Renata, Noma nunca mais. Ainda bem que há outras cozinhas no mundo, com estilos e pessoas diferentes. Lugares capazes de acolher o talento e as enormes expectativas de uma geração que cresceu fascinada pela comida e por seus ri­tuais. “O prazer de manipular os ingredientes e de preparar um prato compensa qualquer estresse”, diz Villard, do Sofitel. “O aluno precisa se dar a oportunidade de ficar o tempo suficiente para entender isso.”

Fonte: Época