Todo cozinheiro aprende a usar a faca e sabe que ela pode ser usada bem ou mal. E também para o bem ou para o mal. Cozinhar é a parte de nossa cultura que mais depende de sistemas viventes. Não apenas pelos ingredientes diretos que aprendemos a domesticar ao longo de 10 mil anos – milho, morango, porco, camarão… – mas também por aqueles indiretos. Invisíveis nas receitas, porém essenciais.

Desde a origem do alimento até sua digestão, passando pelas fases de seu preparo, há milhões de seres vivos, altamente especializados, que nos permitiram transformar o ato de comer: de necessidade de sobrevivência para fator de civilização. Micro-crustáceos e algas que fazem prosperar a vida nos oceanos, fungos que se associam às raízes de cada planta conferindo-lhe características únicas, insetos que viabilizam polinizações irrepetíveis, bactérias e leveduras sem as quais não haveria pão, vinho, queijo, bolos, embutidos, conservas, e ainda seres probióticos que entram de carona em nosso corpo junto com comidas variadas.

Nossa capacidade de manipulação e aproveitamento desses processos é excepcional, considerando que a desenvolvemos apenas nos últimos 10 mil anos. Mas é ainda muito limitada, quando for considerada relativamente ao seu potencial. Seu avanço está ameaçado pelo fato de estarmos começando a perder parcelas dos sistemas vivos antes mesmo de vir a conhecê-las.

Os cientistas acabam de confirmar que entramos no Antropoceno, uma era dominada pela nossa espécie. Mas assim inauguramos também a fase da sexta mega-extinção de vida em 500 milhões de anos, sendo que a última foi 65 milhões de anos atrás, antes do Homo Sapiens atingir uma presença difusa.

A diferença, em relação às cinco anteriores, é expressiva: é a primeira gerada por uma única espécie, que está ciente dela. Paradoxalmente, esta espécie é a que mais depende do delicado equilíbrio entre os sistemas vivos – a biodiversidade – por ter elaborado tão sofisticadas quanto frágeis formas de uso dela, para sustentar seu padrão de vida.

Muitos imaginam que as atividades que lidam diretamente com serviços e benefícios da biodiversidade sejam praticadas por grupos pequenos: por exemplo, cientistas de ponta, como nos casos da medicina ou da indústria biomimética, ou comunidades indígenas e tradicionais, que vivem de forma mais integrada com a natureza. A cozinha desmente esta visão, pois se trata da atividade humana mais difusa em qualquer país ou grupo social, envolvendo praticamente todos os indivíduos de nossa espécie.

Assim, o conhecimento difuso sobre a cadeia do alimento se torna decisivo para o incerto futuro da civilização humana. Os saberes da cozinha podem rapidamente chegar à maioria da população, tornando a nova geração plenamente consciente de nossa dependência e vulnerabilidade. A forma como comemos pode agravar ou reverter a mega-extinção, pois a alimentação impacta fortemente as três principais causas de perda da biodiversidade: conversão de ecossistemas naturais, mudança climática e poluição química. Nossa cozinha está cheia de belas facas que precisamos aprender (e ensinar) a usar com sabedoria. Sem cortar os próprios dedos.

Fonte: Paladar