Montpellier — Antes das oito horas da manhã, em meados de agosto, o sol já queimava a pele dos colhedores de uva. Como as uvas estragam se forem colhidas no calor, a jornada de trabalho nesta vinícola na região do Languedoc acabou bem antes do meio-dia. Na cidade de Murviel-lès-Montpellier, onde o termômetro geralmente excede os 30°C em agosto, antes as colheitas precoces eram exceção e hoje são a nova regra. Para Joël Anthérieu e Edith Bez, donos da vinícola do Clos d’Isidore este ano a safra começou no dia 17 de agosto — bem antes do esperado.

“Normalmente, colhemos no início de setembro”, diz Edith. “Mas este ano se tivéssemos esperado não haveria mais nada além de suco de uva”, diz. Não muito longe dali, na vinícola de Régis Sudre, a mesma situação aconteceu. “Este ano colhemos quinze dias à frente do que pensávamos que faríamos. As temperaturas altas melhoram a qualidade das uvas, mas só até certo ponto. Depois estraga”, diz o dono do Domaine Saint Julia. Essa mudança no ciclo de produção tem como causa , segundo produtores, analistas e o governo francês, algo que o presidente americano Donald Trump tenta negar: extremos climáticos provocados pelo aquecimento global.

Em outros lugares do Languedoc, algumas vinícolas colheram o Muscat a partir de 3 de agosto, e a colheita para o vinho branco começou oficialmente na região no dia 9 de agosto. Datas nunca vistas antes. Nem mesmo em 2003, quando as temperaturas na Europa passaram dos 50°C — uma das mais fortes ondas de calor da história do Hemisfério Norte — as datas da colheita foram tão antecipadas. E o Languedoc não é a única região afetada. Praticamente em toda a França, passando pela Alsácia, Borgonha, Bordeaux, Jura, Vale do Loire, Vale do Ródano… em todas as regiões viticultoras as uvas se adiantaram. Em algumas comunas de Champanhe a colheita começou em 26 de agosto ao invés do esperado 8 de setembro.

Segundo dados de uma pesquisa Instituto Nacional de Pesquisas Agrícolas (INRA), na França, desde 2005 a colheita da uva no país se adiantou 15 dias por causa das mudanças climáticas. Por consequência, há mudanças significativas no sabor do vinho e na produtividade das vinícolas. Este ano, em particular, a colheita foi historicamente a mais baixa desde 1945. Segundo o Instituto de Estatística do Ministério da Agricultura francês, a forte e inesperada geada no começo da primavera e a forte seca no verão afetaram fortemente os vinhedos franceses. Em um comunicado publicado pelo órgão no começo de setembro, “a produção do vinho deste ano chegará dificilmente a 37,2 milhões de litros, um nível 18% inferior ao de 2016”.

Para Jean-Marc Touzard, diretor de pesquisa no INRA, as consequências do calor na qualidade final do vinho são muitas. “Primeiro, colher quando está muito quente danifica as uvas. Então, esta maturidade inicial aumenta o nível de açúcar que define o grau de álcool da bebida final”, explica. No Languedoc, os vinhos aumentaram em média 1,5 o grau alcoólico nos últimos trinta anos, apenas por causa do clima.

O calor também diminuiu a acidez, um elemento-chave para a sensação de frescor tão apreciada nos vinhos brancos e rosés. O calor extremo também perturba o desenvolvimento dos precursores de aromas e, portanto, o sabor do vinho. Segundo Touzard, o vinho tinto passa a ter mais aromas de geleia ou compota de frutas (fruta cozida) em detrimento do aroma característico de fruta fresca. “Nós até observamos os efeitos do aquecimento global na cor do vinho, as bebidas estão cada vez mais claras”, diz o especialista. Ou seja, nascem vinhos mais alcoólicos, menos ácidos e com um novos perfis aromáticos — tudo isso os deixa com gosto e textura diferentes de sua “personalidade original”.

“No verão de 2000, por exemplo, por causa do forte calor na época da colheita alguns pinot noirs da região de Côte de Beaune apresentaram características típicas do vinho de outra região, a do Vale do Ródano”, completa ele. Ao mesmo tempo, a seca e o calor altera a presença do oídio, um fungo que pode destruir culturas quando existe muita humidade na terra. Em Champanhe ou na Alsácia, onde uma vez as uvas lutavam para amadurecer por falta de sol, esse problema já não existe mais.

O novo mapa do vinho

Um relatório publicado em 2009 pelo Greenpeace prevê que se as temperaturas aumentarem de 4 a 6°C até 2100, “vinhedos tradicionais (como as vinhas mediterrâneas) podem desaparecer” e “pelo menos 1.000 quilômetros quadrados de vinhedos ao redor do mundo vão se deslocar na direção norte”. Em 2013, um estudo publicado nos EUA pela revista Nature Climate Change, diz que a área agrícola europeia adequada para o cultivo da uva diminuirá em até 68% até 2050 devido ao aquecimento global e um novo mapa do vinho pode vir à tona.

Segundo um mapa previsto pelo INRA, se as previsões de mudanças climáticas anunciadas acontecerem como previstas, nos próximos 50 anos o clima mediterrâneo do sul da França se aproximará ao clima do vale do Hunter na Austrália, onde o Shiraz produzido é considerado um dos melhores do mundo e os termômetros passam facilmente dos 45°C. A região de Bordeaux conhecerá um clima equivalente ao clima da região do Porto, em Portugal e de Napa, no estado da Califórnia, nos EUA. Os famosos vinhos de Bordeaux e de Champanhe encontrarão um novo lar e um clima propício ao norte do mapa, na Inglaterra. Toda produção da Alsácia, Borgonha, Vale do Loire, Vale do Ródano passariam a produzir um vinho de caráter misturado que ficaria entre o vinho de Bordeaux e suas produções normais.

Em outras palavras, as mudanças climáticas, além de anteciparem a colheita da uva, colocam em risco o pedigree dos vinhos da França. A noção de terroir, ou seja, uma zonas tradicional de plantio onde cada tipo uva cultivada se adapta lentamente ao solo, ao clima e ao estilo de plantio poderá ser completamente destruída.

Já os ingleses, grandes consumidores de vinhos e espumantes, face ao aumento da temperatura climática relançaram os seus vinhedos, principalmente nas regiões de Sussex e Kent, ao sul e sudeste de Londres. Deu tão certo que as vendas dos espumantes nacionais cresceram 27% em 2016, um resultado bem mais robusto do que a alta de 5% do champanhe francês no mesmo ano. Em dezembro do ano passado, a famosa maison Tattinger produtora de champanhes comprou 69 hectares de terra produtiva no Reino Unido — o que causou furor e descontentamento entre franceses. A marca alegou que foram apenas razões econômicas que motivaram a decisão e que o verdadeiro champanhe continua incomparável e nenhuma outra região produtora no mundo ameaçara o reinado da bebida francesa.

Um setor que vai se reinventar

Rentável, a vinicultura é o segundo maior setor de exportação da França, com um superávit de 10,5 bilhões de euros (cerca de 39 bilhões de reais) de acordo com a associação profissional Wine & Societycentro de estudo francês sobre o vinho. Graças aos 750.000 hectares de videiras, em 2016 a França foi o segundo país produtor de vinho do mundo com 41,9 milhões de litros, atrás da Itália, com 48,8 milhões de litros e o primeiro em termos consumo por habitante, com 42 litros de vinho per capita por ano. Além disso, o setor emprega direta e indiretamente 558.000 trabalhadores. Motivos suficientes para temer os impactos do aquecimento global no setor.

A pesquisadora do INRA Nathalie Ollat, que trabalha junto a Jean-Marc Touzard, dirige o projeto Laccave que administra 23 centros de pesquisa na França e cerca de uma centena de pesquisadores que buscam soluções de adaptação às mudanças climáticas para viticultura e enologia. Para ela, uma solução possível para evitar que os impactos climáticos piorem o vinho é adaptar o perfil das lavouras, adotando o plantio das vinhas mais rentes ao solo de forma a melhor preservar a umidade do solo e proteger as uvas dos raios solares. Junto aos viticultores, o projeto busca encontrar as variedades de uvas certas e os lugares certos para plantá-las. “Todos se adaptarão, embora seja verdade que nós nunca fomos confrontados com mudanças climáticas tão rápidas”, comenta Nathalie que acredita que a França não deixará jamais de produzir excelentes vinhos, desde que esteja disposta a usar espécies que se adaptem às novas condições.

Hoje, todos estão fazendo sua experiência. Alguns produtores plantam árvores ao redor das videiras para protegê-las do sol ou as abrigam sob painéis. Há ainda medidas mais radicais como deslocar o plantio, por exemplo, plantando pés mais altos nas encostas. No Languedoc, as videiras crescem gradualmente nas encostas que levam ao planalto de Larzac dando origem a novos terroirs cada dia mais apreciados.

O futuro do vinho será também em grande parte uma questão de marketing, para que todas essas inovações e novos perfis de vinhos sejam bem recebidas pelos consumidores. Assim como uma receita de família que se adapta ao gosto do freguês contemporâneo. Se no século XVII, as pesquisas do monge Dom Pérignon ajudaram a transformar um vinho “estragado” em uma bebida espumante hoje apreciada mundialmente como champanhe, uma outra boa dose de criatividade será necessária para a criação do vinho do futuro.

Fonte: Exame