Quando peguei o rolo de massa na mão, finalmente senti o impacto da energia, a alegria do reconhecimento. Sabia que estava na cozinha de Julia Child e prestes a colocá-la em funcionamento.

Em agosto, depois de alugá-la dos donos atuais pelo Airbnb, passei uma semana vivendo e cozinhando em La Pitchoune, a casa que Julia e o marido, Paul, construíram na Provença, em 1965 e onde viveram, intermitentemente, até 1992.

A repórter Julia Moskin, do 'New York Times', passou uma semana na La Pitchoune, casa de Julia Child na França.
A repórter Julia Moskin, do ‘New York Times’, passou uma semana na La Pitchoune, casa de Julia Child na França. Foto: France Keyser|NYT

Antes de chegar, fiquei com medo que, de lá para cá, a casa tivesse sido reformada e se tornado sofisticada a ponto de não guardar mais nenhum indício de sua dona; ao mesmo tempo, esperava que a cozinha fosse o lugar em que seu espírito, e não suas espátulas, tivesse permanecido. Planejei minhas aventuras culinárias com base no segundo volume de Mastering the Art of French Cooking, produzido quase todo entre 1965 e 1970.

La Pitchoune fica nas colinas que se erguem sobre a Côte d’Azur, a 16 km ao norte de Cannes, embora dê a impressão de estar bem longe dos iates, da multidão e das brigas de burquíni da Riviera. Os Child se sentiram atraídos pela Provença por razões bem mais elementares: sol, azeitonas, figos, vinho.

Havia um benefício particular nesse lugar escondido: Julia Child e sua coautora, Simone Beck, puderam continuar trabalhando no segundo volume, que demorou para sair. Simone e o marido, donos do terreno sobre o qual La Pitchoune foi construída, viviam na sede da propriedade, que continua de pé, a poucos metros dali, na encosta ensolarada e desolada.

Não é possível dizer se os utensílios ainda não os mesmo de Julia, mas eles ocupam os mesmos lugares pensados por ela.
Não é possível dizer se os utensílios ainda não os mesmo de Julia, mas eles ocupam os mesmos lugares pensados por ela. Foto: France Keyser|NYT

Uma vez que a casa funcionou como escola de gastronomia durante muitos anos, não há como saber exatamente quais os utensílios que Julia usou, se é que ainda sobrou algum, mas esse detalhe não me impediu de sentir sua presença ali. A cozinha ainda se parece basicamente com o que mostravam as fotos dos anos 60 e 70, inclusive os batedores, as formas e o tal rolo de massa grande e pesado, tudo pendurado nos seus devidos lugares no painel da parede.

Muitas peças originais continuam lá: meu alho e minhas chalotas ficaram no pequeno recipiente de plástico em que ela marcou “ail echalotes” com um rotulador Dymo. Usei as facas em aço carbono antigas e manchadas, mas ainda incrivelmente afiadas dispostas no cepo que Paul Child fez, sobre a bancada.

Almocei na sacada onde ela alimentou lendas como os autores de culinária James Beard e Mary Frances Kennedy Fisher; nas minhas andanças, segui a trilha de alguns pratos da região que adorava – petiscos como flor de abóbora frita e socca na feira de Cannes; anchova salgada e azeitona caillette em Nice; mexericas inteiras e violetas cristalizadas da Confiserie Florian, perto de Grasse.

A casa La Pitchoune fica nas colinas que se erguem sobre a Côte d'Azur, a 16 km ao norte de Cannes.
A casa La Pitchoune fica nas colinas que se erguem sobre a Côte d’Azur, a 16 km ao norte de Cannes. Foto: France Keyser|NYT

 

Na sacada da casa, Julia já alimentou lendas como o autor de culinária James Beard e M.F.K. Fisher.
Na sacada da casa, Julia já alimentou lendas como o autor de culinária James Beard e M.F.K. Fisher. Foto: France Keyser|NYT

Descobri que os ingredientes da Provença de Julia Child continuam intactos – berinjelas e folhas de pêssego, limões e queijo de cabra – como também as feiras onde são vendidos, os produtores responsáveis por eles e os vendedores que os comercializam, com direito a dicas culinárias.

Já fora da casa, os sinais da vida dela são difíceis de achar.

Ela nunca foi celebridade na região, segundo seu sobrinho-neto, Alex Prud’homme, que acabou de publicar The French Chef in America, o relato sobre a vida dos Child depois que saíram da França e voltaram para os EUA. “O sul da França é famoso pelo despojamento e as pessoas que moravam nas cercanias não sabiam, ou não ligavam para o fato de Julia-Child-a-estrela-da-TV-norte-americana viver ali”, escreve ele, relembrando uma visita de 1976.

A região cresceu, mas as feiras e os ingredientes seguem os mesmos.
A região cresceu, mas as feiras e os ingredientes seguem os mesmos. Foto: France Keyser|NYT

Na Boucherie Fabre, um açougue que fica do lado de fora do Marché Forville, em Cannes, desde 1899 (e onde me aconselharam a comprar músculo para o meu guisado à provençal), tive que reunir coragem para perguntar aos homens atrás do balcão, sérios, roupas manchadas de sangue, se alguém se lembrava dela.

Para minha surpresa, um funcionário meio curvado fez uma imitação até bem boa de Julia Child, erguendo a mão bem alto para indicar que seu 1,88 m a fazia se destacar ainda mais na França que nos EUA.

Em um de seus restaurantes favoritos, o Les Arcades em Biot, a chef, Mimi Brothier, continua preparando praticamente os mesmo pratos desde que a casa foi inaugurada, nos anos 60, como refeitório para os artistas locais. Provei suas sardinhas fritas, os pimentões assados à perfeição e a tradicional soupe au pistou. “Madame Child adorava nossos pratos e enquanto eu estiver por aqui, nada vai mudar”, afirma Mimi, nascida aqui em 1934.

Nas colinas ao lado da casa, a vila Châteauneuf de Grasse.
Nas colinas ao lado da casa, a vila Châteauneuf de Grasse. Foto: France Keyser|NYT

As mudanças, porém, acontecem em ritmo forte nessa parte da Provença, o departamento dos Alpes Marítimos que inclui Cannes, St.-Tropez e Antibes, além de Nice: desde que os Child se mudaram para lá, fazendas e vinhedos vêm se transformando em campos de golfe e mansões para acomodar as elites internacionais que querem viver na Côte d’Azur. Lojas famosas tiraram os clientes do centro das vilazinhas. Nice, hoje a quinta maior cidade da França, cresceu e engoliu aldeias, vales e campos.

Dentro da cozinha de La Pitchoune, porém, a impressão era a de que pouca coisa mudou. No balcão, longo e cheio de marcas, abri o livro na seção de massa folhada, com o desenhinho de três tabletes de manteiga e um rolo de massa sobre as receitas, exatamente como o que eu segurava, com mais de 60 cm de comprimento e grosso feito um taco de beisebol. “Bata a manteiga com o rolo para amolecê-la”, era a instrução.

Eu nunca tinha pensado nisso. Sempre cortava cuidadosamente os pedacinhos congelados e tentei até acelerar o processo jogando tudo no liquidificador em funcionamento (é também um jeito muito bom de garantir respingos de gordura no teto), mas nunca tinha me vindo na cabeça dar umas pauladas na manteiga para submetê-la à minha vontade.

Na cozinha de Julia Child, ainda é possível sentir sua presença.
Na cozinha de Julia Child, ainda é possível sentir sua presença. Foto: France Keyser|NYT

Isso, em parte, porque a minha cozinha moderna não tem espaço para uma coleção de ferramentas poderosas como marretas, quebra-gelos e cabos de vassoura – esse último, segundo sua editora, Judith Jones, ficava à mão para quebrar os ossos da canela dos patos e gansos. Nem preciso dizer que o truque deu supercerto, produzindo uma manteiga macia e elástica, mas ainda fria, ideal para a massa.

(Se esses utensílios eram de fato de Julia, não se sabe. A Fundação Julia Child entrou na justiça, em junho, contra o Airbnb, para proibir o uso da norte-americana em uma campanha promocional de aluguel da casa; diz também que a alegação de que os utensílios de sua cozinha continuam “intactos, do jeito que ela os deixou” é falsa.)

Usar sua cozinha e seguir suas receitas durante uma semana me fez lembrar o quanto o preparo tradicional é exigente em termos físicos. “É preciso ter mãos fortes para cozinhar. Você tem que ser durona”, disse ela para a Vogue, em 1968, durante uma sessão de fotos.

Com seus livros e programas de TV, Julia Child ensinou os Estados Unidos a fazer cozinha francesa.
Com seus livros e programas de TV, Julia Child ensinou os Estados Unidos a fazer cozinha francesa. Foto: Bill Aller|NYT

Forçar legumes fibrosos no moedor, amassar pão e virar a manivela do moedor de carne de aço puro exigem verdadeiro preparo físico. E essas eram atividades básicas na época em que Julia ensinava os EUA a cozinhar, com seus livros e programas de TV, muito antes que as cenouras baby, a carne moída, a massa de pão préassada e outras facilidades estivessem disponíveis em qualquer supermercado.

O casal construiu La Pitchoune (e a apelidaram de “La Peetch”) depois da publicação de Mastering the Art of French Cooking, em 1961, que foi um sucesso; eles tinham voltado para os EUA e faziam The French Chef para o WGBH, mas Julia Child ainda estava longe de ser famosa e o casal não era rico.

Por isso, a cozinha de La Pitchoune não é luxuosa, nem espaçosa; não ocuparia nem um canto do famoso “celeiro do entretenimento” de Ina Garten. Com painéis nas paredes e iluminação industrial, não se parece em nada com o cenário apropriado a uma chef famosa, mas tem tudo a ver com o objetivo pelo qual foi montada: uma “oficina” prática para uma cozinheira com um trabalho danado pela frente.

O casal Child se sentiu atraído pela Provença por motivos como: sol, azeitonas, figos, vinho.

O casal Child se sentiu atraído pela Provença por motivos como: sol, azeitonas, figos, vinho.Foto: France Keyser|NYT

Casa de aluguel. No Brasil, a casa de Nina Horta, banqueteira e autora de gastronomia, em Paraty também pode ser alugada pelo Airbnb. Pela cozinha, toda equipada, espalham-se compoteiras, gamelas e a coleção de utensílios de Nina. Objetos únicos juntados pela escritora nas andanças pelo interior do Brasil.

Fonte: Paladar