Hoje, nos Estados Unidos, milhões de caixas de papelão chegam a lares rurais e urbanos todos os meses, contendo tudo o que é preciso para preparar o jantar, de vinagre de arroz a farinha de rosca. Os ingredientes são embalados nas proporções exatas, prontos para serem picados ou salteados de acordo com as receitas bem ilustradas. Em menos de uma hora, até mesmo um cozinheiro medíocre, utilizando sal, pimenta e óleo, pode produzir uma refeição digna do Instagram.

No espaço de poucos anos, mais de 100 empresas entraram na onda da refeição pronta. Blue Apron (talvez a mais famosa), PeachDish (que usa alimentos produzidos por agricultores da Geórgia e receitas de chefs do Sul do país), Just Add Cooking (com caixas montadas na Nova Inglaterra e que viajam pelo país), Sun Basket (dedicada à culinária do norte da Califórnia) e Purple Carrot (que só vende kits veganos) são alguns poucos exemplos. São sucesso? Sim. Unanimidade? Nunca.

Se você fizesse uma lista de pessoas que provavelmente odeiam os kits para o preparo de refeições entregues em casa, Sara Moulton estaria nela. Nos EUA, Sara é uma das escritoras de livros de receita e professora de culinária na ativa há mais tempo, já tendo sido estilista de pratos de Julia Child e decana de programas na TV e em revistas, cujo novo livro se chama Home Cooking 101.

Mas depois que duas empresas do setor a convidaram para trabalhar com eles, Sara achou que deveria dar uma conferida. Mesmo para aqueles que prestam atenção à tendência da comida feita em casa, fica difícil não ter ao menos um pouco de curiosidade em relação aos kits. Então, lá foi ela.

“Devo dizer que foi uma surpresa agradável”, disse, ecoando o sentimento de vários bons cozinheiros que acabaram encomendando um kit.

Sara ainda não decidiu se irá trabalhar com uma das empresas, mas os kits lhe deram ideias para receitas. E a melhor parte? Ela não precisa decidir o que fazer para o jantar. “Preparar o jantar toda noite realmente cansa. É monótono. Até para mim”, disse ela.

A Technomic Inc., que analisa o setor de alimentos, prevê que, no ritmo atual, o mercado norte-americano possa alcançar até US$ 5 bilhões na próxima década. A Blue Apron, empresa vista como a Starbucks desses kits, disse que hoje envia oito milhões de refeições por mês.

“Ainda somos uma pequena porcentagem do total mundial da cozinha doméstica. Não sabemos por que a Blue Apron não teria um lugar em todos os lares americanos”, disse o diretor-executivo Matt Salzberg, acrescentando que a empresa ganha dinheiro em cada envio.

Alguns analistas dizem que os kits mostram sinais clássicos de uma bolha que já pode estar esvaziando. Eles fazem comparações com a ascensão e queda da Webvan, serviço de entrega de produtos de supermercado, na primeira onda do boom tecnológico, ou os centros de preparo de refeições, em que cozinheiros escolhem receitas on-line e depois chegam para fazer o que basicamente são ensopados feitos com ingredientes pré-cortados. Quarenta dessas empresas abriam por mês no início da década passada, mas acabaram desaparecendo.

Outros dizem que o que existe agora é diferente. Como os alimentos congelados ou o forno de micro-ondas, os kits podem ser uma inovação culinária que altera fundamentalmente o modo em que as pessoas cozinham em casa. “A alface pré-lavada parecia ser um modismo, também”, disse Jenny Zegler, analista de comida e bebida global da empresa de pesquisas Mintel.

Os kits de refeição parecem ter chegado no momento certo, indo a fundo no cotidiano de uma nação digitalmente fluente cujo gosto foi moldado por restaurantes, feiras livres e programas de culinária na TV. Eles atraem pessoas que querem aprender a cozinhar com farinha de grão de bico ou escarola orgânica, mas que não têm muita vontade de sair à cata desses ingredientes.

“Há uma sensação de falta de talento, especialmente entre a geração Y que acha que dá muito trabalho cozinhar ravióli congelado e salada pré-lavada ao mesmo tempo. Eles dizem que os kits podem ensiná-los a cozinhar para conseguirem participar das conversas e se sentirem poderosos”, disse Melissa Abbott do Hartman Group, que pesquisa padrões alimentares.

Michael Pollan, escritor cujo livro Cozinhar, Uma História Natural da Transformação(Ed. Intrínseca, R$ 49,90) foi transformado em documentário apresentado no Netflix, vê os kits como uma evolução positiva na cultura culinária. “Eles passam lições valiosas para as pessoas. Só não sei dizer se seria uma etapa do processo ou solução permanente para um problema.”

Mark Bittman, o autor do livro de receitas, largou seu emprego de colunista doNew York Times, em 2015, para se juntar à empresa de kits veganos da Purple Carrot, que começara na Califórnia, um ano antes. O primeiro carregamento consistia de 93 caixas; agora, a empresa entrega dezenas de milhares de refeições que saem de centros de distribuição em Los Angeles e Nova York.

“Cozinhar é isso. Não é comprar nem planejar e, de certo modo, não é pensar. É só cozinhar.”

Justine Kelly, ex-chef do Slanted Door de Charles Phan em São Francisco, criou a Sun Basket. Ela mesma desenvolve as receitas (escreveu 450 só no ano passado) e, todo mês, envia cerca de 150 mil refeições como lombo de porco com capim-limão e coentro e smoothies de amêndoa e coco para o café da manhã. O preço gira em torno de US$ 11,49/refeição, e ela admitiu que isso o torna um item de luxo para muita gente. Justine disse que tem amigos que não são ricos, mas que o usam porque a relação de custo/tempo de preparo é um ponto a favor.

O custo pode cair para cerca de US$ 9 ou US$ 10 por refeição em algumas empresas, mas Sara Moulton disse que ainda é caro para alguns. “Não acho que seja sustentável para a população em geral,” ela disse.

Andrea Nguyen, escritora de livro de receitas, contribuiu com pratos vietnamitas para a Chef’d. Mesmo assim, não foi seduzida pelos kits porque eles não fornecem o contato humano, nem o prazer existentes na procura de ingredientes ou na exploração do mercado. “Cozinhar é algo totalmente sociológico. Gosto até de falar com os caixas.”

“Em um nível mais profundo, deixar tanta coisa a cargo de uma empresa restringe a essência do significado de cozinhar”, disse Laura Shapiro, historiadora que escreve sobre a culinária moderna dos Estados Unidos.

“Comer o que você cozinhou com suas próprias mãos, com receitas e tradições de família, é o que forma nossa relação emotiva com a comida. Não consigo imaginar que um dia olharemos para trás e diremos: ‘Ah! Lembra aquele curry birmanês da Blue Apron que comíamos nas quintas-feiras?’. Não é a mesma coisa. Não é nosso. Não inclui os sentimentos de família.”

Fonte: Paladar