Diretor internacional do tradicional Guia Michelin, que seleciona os melhores restaurantes e hotéis em diversas regiões do mundo, classificando-os com estrelas que vão de uma a três, Michael Ellis associa um prato saboroso a uma “epifania”. Seu prazer pela gastronomia de excelência é tanto que o americano, de 57 anos, diz, e prova, ser capaz de se lembrar da data exata em que foi arrebatado por alguma comida. “Esse é o tipo de experiência que fica gravada na memória. Para o trabalho que faço, você tem de ter nascido assim, com capacidade de pensar sobre comida”, analisa.

Ellis ingressou na Michelin em 2007 como vice-presidente de vendas e marketing na divisão de motocicletas e migrou para a direção internacional do guia em 2011, na qual supervisiona todo o processo de inspeção dos estabelecimentos selecionados por sua equipe. O guia foi publicado pela primeira vez em 1900, pelo industrial francês André Michelin. No Brasil, o que mexe com seu paladar são pratos considerados triviais para nós. “Gosto de feijoada, pastel, churrasco e caldinho de feijão”, enumera Ellis, que lançou este ano, no hotel Copacabana Palace, a segunda edição do Guia Michelin Rio de Janeiro & São Paulo.
Quando o senhor vai a um restaurante consegue esquecer o que faz ou está sempre avaliando a comida?
MICHAEL ELLIS:
Não dá para separar. Para começar, sempre fui desse jeito e, para fazer o que fazemos, você tem de ter nascido com essa capacidade de pensar sobre comida. Uma pergunta que costumo fazer aos novos inspetores de restaurantes quando os entrevisto é: quais são os cinco pratos que mais o marcaram? Se hesitam muito a me responder ou têm de pensar no que vão dizer, aí passo a ter dúvidas sobre se são adequados para a função. Eu consigo dizer as datas exatas e o nome dos restaurantes em que um prato fez toda a diferença para mim.

Pode dar exemplos?
ME:
Em setembro de 1992, no Jamin, casa que Joël Robouchon (chef francês que acumula o maior número de estrelas no guia) tinha em Paris, eu comi algo incrível: um creme de couve-flor com caviar em diferentes temperaturas. Era muito estranho ouvir a descrição daquele prato, eu não conseguia acreditar que aquilo poderia dar certo, mas, quando provei, era algo simplesmente fantástico! Também tem a vez em que fui ao Aubergine, de Gordon Ramsay (chef inglês), em 1994, e comi lagosta defumada, coincidentemente também com couve-flor. Parecia tão bizarro que eu tive de experimentar, e também foi maravilhoso! Se você tem esse tipo de experiência, esse tipo de epifania, isso fica gravado na memória.

O quanto o senhor conhece da gastronomia brasileira?
ME:
Eu trabalhei no Brasil nos anos 90, mas assumo não ser um expert na cozinha do seu país. Gosto muito de feijoada, pastel, caldinho de feijão, de ir à churrascaria… E do bacalhau que como aqui. Quando venho, sempre vou a restaurantes avaliados pelo Guia (os estrelados somam 19 estabelecimentos, 13 em São Paulo e seis no Rio de Janeiro).

Por que um guia apenas para Rio e São Paulo e não um que abrangesse toda a América do Sul?
ME:
Há coisas excitantes na gastronomia do Brasil, e, também, de toda a América do Sul. Tivemos de escolher, porque não existe recursos para tudo. Mas estamos lançando novos guias: Cingapura, agora em julho, Coreia do Sul, em novembro… Continuamos expandido os passos.

Como diretor internacional do Guia Michelin, quais as suas atribuições?
ME:
O Guia Michelin está presente em 25 países com mais de 20 mil restaurantes. Meu trabalho é a supervisão do processo de inspeção. Temos inspetores anônimos em cada país onde o guia é publicado. E movemos bastante essas pessoas de um lado para o outro: inspetores japoneses para a França, italianos para os Estados Unidos, alemães para Hong Kong, e por aí vai. É muito importante para o Guia Michelin que tenhamos consenso na estrela que conferimos.

Há inspetores brasileiros?
ME:
Por enquanto, não, mas estamos no processo de selecioná-los.

O que é necessário para uma pessoa tornar-se inspetor do guia?
ME:
A maioria estudou para ser chef ou trabalha no ramo hoteleiro, homens e mulheres. Algo muito importante é que eles precisam ter o número certo de papilas gustativas em suas línguas. É cientificamente comprovado que isso transforma o paladar da pessoa em algo diferente, especial, e eles têm de aperfeiçoar essa capacidade de sentir sabores. Outra coisa essencial é traduzir o paladar em expressão. Não é só o gosto. Essas pessoas têm de escrever, expressar o que estão sentindo no seu palato. Acredito que é uma habilidade muito especial, por isso essa dificuldade para encontrar nossos inspetores. Mas, uma vez que eles se juntam a nós, não querem sair até se aposentarem. Para quem gosta de comer, é um trabalho único.

Muito se fala sobre as inspeções do Guia, tentativas de chefs subornarem inspetores. Há alguma verdade nisso?
ME:
Costumo ouvir todos os tipos de coisas loucas e tolas sobre como atribuímos estrelas aos restaurantes. A realidade é que nós mandamos os inspetores aos locais anonimamente. Eles vão lá, fazem suas refeições e, às vezes, depois, podem se identificar, inspecionar a cozinha e falar com os chefs. A seguir, começam a escrever seus relatórios elaborados. O que tentam fazer nos restaurantes é escolher aqueles pratos que venham a testar as habilidades do chef. Não vão lá pedir um simples bife com batatas fritas, por exemplo, mas algo que mostre a capacidade do chef de cozinhar com as técnicas apropriadas, de harmonizar os sabores, e uma assinatura que exponha a personalidade dele. Estamos avaliando cinco coisas na nossa visita: qualidade do produtor, domínio das técnicas culinárias, harmonia e equilíbrio de sabores, a personalidade do chef e a regularidade.

Os chefs aproximam-se pelo seu cargo?
ME:
Sim, e isso já faz parte do meu trabalho. Uma coisa que gostamos de encorajar é o diálogo entre a comunidade de chefs e o nosso guia. Se um chef nos procura e pergunta como está indo, não podemos falar o que ele pode fazer, mas podemos dizer o que encontramos…

Na década de 70, o senhor estudou gastronomia. Ainda cozinha?
ME:
Com certeza. Gosto de fazer o que chamamos de cuisine bourgeoise (cozinha tradicional), com pratos como pot-au-feu (guisado de carne), blanquette de veau (carne de vitela com cenouras) e bœuf bourguignon (guisado de carne no vinho tinto), que precisam ser cozidos por horas para que fiquem saborosos e macios. Mas também gosto de surpresas e estou sempre à procura de coisas excitantes e novas.

O que pensa dos food trucks?
ME:
Acredito neles, há food trucks de qualidade. Mas seria um pouco difícil colocá-los no guia, porque estão sempre mudando de local.

O senhor come junk food?
ME:
Não gosto de fast food, mas, quando estou na Alemanha, como döner kebab (um tipo de sanduíche de carne assada). Há lugares que fazem hambúrgueres fantásticos, mas, de maneira geral, não são cadeias de fast food. E também gosto da pizza que como em Nápoles, na Itália, que é uma das minhas comidas favoritas. Eu acabei de voltar do Texas, e lá temos um churrasco ótimo.

Qual seria sua última refeição?
ME:
Perderia o apetite se soubesse que seria minha última refeição (risos).

Michael Ellis (Foto: Isac Luz/ Ed Globo)
Michael Ellis (Foto: Isac Luz/ Ed Globo)

Fonte: Revista Quem