Roberta Subrack já serviu chefes de estado, príncipes e passou anos servindo a presidência – na era FHC – no Palácio do Planalto. Mas nem tanta convivência com a realeza a fez esquecer das raízes mais simples, aprendidas com a avó Iracema, de 92 anos, sua maior referência na cozinha e na vida.

Em palestra no Semana Mesa SP, que teve como tema principal “Raízes – de onde viemos e para onde vamos”,  ela propôs este resgate, convidando os participantes a revisitarem os processos manuais e a apostarem no potencial dos ingredientes brasileiros.

O chuchu e o quiabo, por exemplo, itens nem sempre valorizados, para ela são verdadeiros objetos de pesquisa. “Seria muita pretensão achar que já fizemos de tudo com o quiabo. É bom fazer esse exercício de humildade e ter aquela sensação de ‘puxa, como não pensei nisso antes'”, disse durante a apresentação.

Antes de se tornar chef, ela sobreviveu vendendo cachorro-quente nas ruas de Brasília, que tinha como diferencial o molho de tomate feito pela avó. Na época, ainda não sonhava em se tornar uma especilista da área.

Hoje, é dona do restaurante que leva o seu nome, no Rio de Janeiro, que já recebeu diversos prêmios e figurou na 80ª e na 71ª posição da lista dos 50 melhores restaurantes do mundo, pela revista Restaurant.

Já serviu personalidades como: Tony Blair, o ex-presidente americano Bill Clinton, o rei da Espanha Juan Carlos, o ex-presidente cubano Fidel Castro e o príncipe Charles. No entanto, prefere o posto de cozinheira ao de de popstar.  “No fundo, a gente precisa estar confortável em ser um serviçal. A gente serve dia e noite”.

Em entrevista exclusiva ao Terra, ela falou sobre carreira, gastronomia brasileira, ‘chefs-celebridade’ e, claro, sobre a recompensa em viver para servir. “Achar que o cozinheiro é um popstar é um grande erro, porque a nossa vida é diariamente sofrida. É um sofrimento que tem a ver com o físico e com o emocional. O que compensa isso? Se você ama muito o que você faz”. Confira abaixo os principais destaques da entrevista.

–  Como foi a experiência de trabalhar no Palácio da Alvorada?
Roberta Sudbrack:
Foi uma experiência de vida. Muito trabalhosa, um trabalho de basicamente 24 horas sem desligar. Tem a questão glamourosa do cargo, mas no fundo é uma vida de cozinheira. Todo este glamour no dia a dia não existe. É ralação e horário extenso, a cozinha é um lugar de trabalho pesado, e no Palácio era assim também.

Mas foi uma experiência maravilhosa, porque cada dia era uma história que se contava, e os protagonistas sempre foram os ingredientes brasileiros. Então o trabalho que eu faço hoje eu já comecei a fazer lá, a gente mostrava o Brasil dentro do prato para os visitantes estrangeiros, os reis, as rainhas, os príncipes.

–  Quais eram os pratos preferidos do Fernando Henrique Cardoso e da Dona Ruth?
R.S.:
Tanto o presidente, como a dona Ruth gostavam de comida muito simples. Do presidente o prato preferido era o picadinho, que eu sirvo até hoje no meu restaurante e chamo de ‘Picadinho do Presidente’. É um picadinho feito com técnica precisa, ingredientes bons. O molho é natural, feito com o os ossos da vitela, cozido por 36 horas. Estes detalhes dão um resultado diferente, mais natural e mais leve. É servido com arroz, banana à milanesa e farofa de cenoura.

O ovo pochê era proibido devido à quantidade de calorias que eles tinham que ingerir por dia. Hoje em dia, toda sexta-feira este é o único prato fixo do meu menu, agora com o ovo. O da dona Ruth era o frango com polenta, com frango caipira.

Na verdade foi uma convivência linda porque os dois são educadíssimos, gostam de comer, compreendem a importância da gastronomia para a cultura brasileira. Você receber um chefe de estado e fazer um prato típico, com ingredientes da culinária brasileira, você está mostrando o Brasil dentro daquele prato e eles compreendiam isso.

–  Neste tempo todo atendendo autoridades, teve algum pedido inusitado?
R.S.:
Tinha muitos. O príncipe Charles tinha uma lista de restrições imensas. A nossa sorte é que quando cheguei no Palácio eu vi aquele quintal daquele tamanho, fui conversar com a Dona Ruth e dizer que a gente precisava de uma horta. Aí ela soltou fogos de artifício. Na verdade era um sonho dela, mas eu consegui realizar.

Como uma das restrições (do príncipe Charles) eram só ingredientes orgânicos, naquela época tínhamos tudo ali. Fiz basicamente peixe e verdura, e ele me chamou e brincou, dizendo que aquele ‘fish and chips’ (prático típico inglês) era muito melhor que o dele e que ele queria levar a receita. (risos)

– O fish and chips que você preparou era com batata doce, né?
R.S.:
Sim. A gente achava que o acesso a ele era muito restrito, mas ele não tinha comido nada durante toda a estada dele no Brasil. Ele trouxe um mordomo que cozinhava pra ele no Brasil, e lá ele comeu tudo, todo mundo ficou encantado.

– Você já disse em entrevista que ‘o prato que você pediria no corredor da morte’ é o frango ensopado com polenta da sua avó. Qual a influência e a importância que ela tem na sua carreira hoje?
R.S.:
Toda a importância, não só como referência culinária, mas também como referência de pessoa, porque é uma guerreira. Até hoje com 92 anos se estou fazendo alguma coisa em casa ela tá ali, firme comigo, desde as primeiras horas, e tentando ajudar de alguma maneira.

Hoje em dia ela diz que é muito difícil cozinhar ao meu lado porque eu sou uma mestra (risos). Mas no fundo no fundo a grande mestra é ela e sempre foi minha inspiração desde o cuidado com a apresentação do prato.

– É dela também a autoria do molho de tomate que projetou seu hot dog em Brasília. Como foi essa fase?
R.S.:
Quando a gente perdeu o meu avô eu não sabia o que ia fazer. Eu ia à feira e comprava caixas de tomate na feira e a noite eu ia pra rua vender. Vendia em carrinho.

Achar que o cozinheiro é um popstar é um grande erro, porque a nossa vida é diariamente sofrida. É um sofrimento que tem a ver com o físico e com o emocional. O que compensa isso? Se você ama muito o que você faz.

–  Na sua cozinha, você também segue o conceito da simplicidade aplicada a alta gastronomia, usando itens para os quais muita gente torce o nariz (como quiabo e chuchu). Qual o segredo para fazer as pessoas acreditarem nestes ingredientes?
R.S.:
A minha grande fonte de inspiração é o cotidiano brasileiro. São as cozinheiras, as mulheres que fazem doce nos tachos, este saber para mim é o que mais me emociona e é o que eu tento trazer para a minha cozinha.

A minha linguagem é moderna, é mostrar uma nova possibilidade destes mesmos ingredientes, mas eles precisam manter essa essência. Senão perde a conexão com a cozinha brasileira e aí eu não acho que a gente tem o direito de chamar de cozinha moderna brasileira. Pode chamar de cozinha moderna, mas a cozinha moderna brasileira tem a ver com a panela de barro.

– Muitos chefs se tornaram verdadeiras celebridades. O que você acha que causou essa mudança de status?
R.S.:
Acho que a gente lutou muito para que a profissão fosse uma profissão respeitada e importante na cultura do País. Isso foi uma batalha pra gente. Houve uma distorção em certo momento para o ‘chef celebridade’.

Enquanto a pessoa está sonhando em ser um chef ela está no caminho errado. Ela tem que sonhar em ser um cozinheiro. No fundo, a gente precisa estar confortável em ser um serviçal. A gente serve dia e noite.

A outra coisa é uma questão prática: você sempre vai  entrar pelas portas dos fundos, sempre vai usar o banheiro de empregados, não vai comer nunca, vai comer errado. Você se estoura pra servir quente, no momento certo, mas você nunca vai comer essa comida desse jeito. Vai comer sempre passada, no momento errado. Com muita sorte você vai comer (risos). Se você não está confortável com isso não adianta nada.

Agora não quer dizer que eu não ache sensacional em tão pouco tempo essa profissão sair da ‘vergonha’. Porque a minha geração quando foi contar para os parentes que queria ser cozinheiro só ouviu barbaridade. A minha vó mais uma vez nesse caso é referência, porque há quase 18 anos quando eu disse isso toda minha família foi contra. E ela disse essa frase: ‘se é isso que você quer, faça o melhor que você puder’.

Mas naquela época não era bonito ser cozinheiro. Então eu acho lindo que hoje seja uma profissão respeitada. Só que a balança precisa equilibrar na questão de (os chefs) entenderem que não são cantores de rock, atores de cinema.

– Você é uma das chefs elogiadas pelo Alex Atala, que, por sua vez, é um dos nomes mais fortes da gastronomia brasileira no mundo. Qual é o ponto de conexão entre vocês dois?
R.S.: Primeiro acho que somos da mesma geração. A gente começou isso tudo muito junto, acreditando em uma mesma coisa: a valorização dos nossos ingredientes. E o trabalho que ele faz é inegável, ele abdica de muita coisa para poder levar a cultura brasileira como ele leva para o mundo inteiro.

Acho que o mais importante é o brasileiro entender a grandiosidade que está por trás de um prato que a gente serve. Às vezes tem um ingrediente que levou semanas para chegar, passou por lombo de burro, de cavalo, estrada com buraco, para chegar ali.

Acho que esse trabalho que a gente faz, todos nós, não só o Alex, eu, mas pessoas que as vezes a gente nunca ouviu falar, pra chegar na mesa do cliente, e às vezes o cliente não valoriza. Aí vai viajar, para qualquer um destes países que já é referência gastronômica e sempre aquilo causa mais impacto, aquilo é melhor. Enquanto isso não mudar… Então acho que a gente se encontra aí: nessa crença incansável de que a gente tem uma riqueza sem fim. É muito mais importante ser valorizado aqui do que lá fora. E é por isso que eu falo que a cozinha brasileira não precisa ser exótica. Porque a cozinha brasileira é rica. Todo mundo quer ser assim, mas a gente é. A gente nasceu assim.

Fonte: Terra